Indígena se forma em Medicina na UFPA
Ele quase ficou à deriva, mas conseguiu. A frase que resume algumas das dificuldades que Izaque Txekewe Erayhe enfrentou para se registrar na Universidade Federal do Pará (UFPA) após ser aprovado no vestibular para Medicina, em 2013, também pode ser usada para descrever a trajetória dele no curso de graduação. O mais importante dela é seu trecho final: Ele conseguiu. E o agora doutor Izaque Erayhe já tem destino certo: voltar para a Aldeia Kassawá, no estado do Amazonas, para exercer a Medicina.
Izaque se formou em Medicina no dia 21 de maio. A cerimônia de colação de grau foi na secretaria da Direção do Instituto de Ciências Médicas (ICM). O prédio que há mais de 100 anos é a sede da formação médica na UFPA, foi o local em que Izaque Erayhe jurou cuidar dos demais na presença de seus familiares e de um corpo docente e técnico emocionado.
“Quando ele [professor Silvestre Savino, diretor do ICM] disse: ‘agora você é médico’, me pegou desprevenido. Eu acho que não esperava, mas foi quando a ficha caiu. Agora eu estou muito, muito feliz”, revela Izaque que hoje fala português perfeitamente. Mas chegou à UFPA sem o domínio do idioma.
“Foi difícil. Estudar, entender os outros, fazer as provas. Eu contei com muita ajuda. Tinha uma sala de apoio onde funcionava o [Programa de Educação Tutorial] PET QI e os monitores ajudavam a digitalizar os documentos, a fazer os trabalhos e a estudar também. Também tive a compreensão dos professores e, especialmente, da professora Izaura [Vallinoto] que abraçou a ‘minha causa’”, conta Izaque.
A professora Izaura Maria Vieira Cayres Vallinoto foi orientadora de Izaque no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), com o tema “Práticas Integrativas e Complementares: o cenário na Região Norte, Brasil”.
Para ela, aprender português enquanto estudava Medicina e preencher lacunas no conhecimento da educação básica que precisavam ser superadas na faculdade foram as principais dificuldades que Izaque enfrentou. Mas não as únicas.
“Ao longo do processo foram detectadas dificuldades familiares, financeiras às quais a faculdade, em si, não teve muita gestão, mas mantivemos sempre a escuta aberta para auxiliá-lo nos encaminhamentos. Seu jeito sempre sorridente e positivo, certamente, deve ter ajudado na superação das intempéries”.
UM BARCO À CAMINHO DE BELÉM - Ele decidiu “tentar Medicina” por inspiração de uma colega que passou no vestibular para essa graduação. Antes, o objetivo era ser odontologista e ele já tinha prestado vestibular em dois estados, Minas Gerais e Bahia, em busca desse objetivo.
Ao saber da divulgação do resultado, Izaque foi até a cidade mais próxima que fica há vários quilômetros da aldeia para saber o resultado. Achou que não tinha conseguido. Mas enquanto ele voltava para casa, o então presidente da Associação dos Povos Indígenas Estudantes na UFPA (APYEUFPA) conseguiu falar com a representação mais próxima da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FINAI), que por sua vez, cedeu o número de telefone do orelhão da aldeia. Aparelho que foi atendido por um primo do vestibulando.
“Quando cheguei, ele disse que eu tinha sim passado. Desconfiei, mas achamos melhor eu voltar para Belém o quanto antes. Mas o final de semana já estava chegando e o prazo para entregar toda a documentação na UFPA era na terça. A ideia era tentar, sabendo que talvez não desse tempo”, lembra Izaque.
Uma embarcação com um motor levou o jovem no começo da longa viagem. Mas o motor começou a dar sinais de que poderia não dar conta do trajeto. Quase na fronteira da Terra Indígena Nhamundá, na última aldeia, ele parou. “Por sorte foi quando estávamos na aldeia. Aí minha tia que vivia ali emprestou o motor do barco dela e ficou com o nosso para tentar ajeitar”.
Ao chegar na cidade ficou claro que a viagem até Belém demoraria vários dias. Mas foi novamente quando a APYEUFPA interferiu. “Fiz uma procuração para o presidente da Associação e tentamos enviar os documentos originais mesmo pelo correio rápido, mas não foi possível. É que faltavam selos do serviço de entrega rápida onde estávamos. Fomos para Faro e lá conseguimos, então, mandar o pacote sem saber se ele chegaria a tempo. Mas não tinha o que fazer, decidimos voltar para casa e esperar”.
Só uma semana depois, veio a confirmação e a comemoração: Izaque Txekewe Erayhe era estudante de Medicina da UFPA.
Em Belém, foram 9 anos de luta. Contra a barreira linguística, contra as defasagens do ensino médio público, contra a saudade de casa, contra a pandemia, contra um ritmo de estudos desafiador. E, embora, ele não tenha lutado sozinho, foi a vontade de superar cada dificuldade que conduziu o jovem universitário. “Essas dificuldades curriculares foram traduzidas em algumas reprovações, às quais, pouco a pouco, foram sendo sanada, sempre com o suporte de monitorias e acompanhamento docente”, resume a professora Izaura.
DE VOLTA À ALDEIA: Com o diploma na mão e o registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) à caminho, Izaque Erayhe sabe bem o que vai fazer: “Voltar para casa. Até o final do ano, quero voltar à minha aldeia e poder atender à minha comunidade. Lá o atendimento em saúde é feito principalmente por técnicos de enfermagem que visitam as aldeias. E mesmo quando nos encontramos com o médico, há dificuldades. Mas como eu falo o idioma, entendo o dia a dia vai ser mais fácil as pessoas [que vivem na Terra Indígena] se sentirem à vontade comigo, me explicarem o que sentem, quais os sintomas e, assim, eu vou poder dar a eles um melhor atendimento”, detalha o médico.
Para a pesquisadora Izaura Vallionoto, um médico indígena é um mediador que traduz continuamente as duas culturas, os dois idiomas e as duas compreensões sobre saúde e bem-estar.
“Os povos indígenas têm suas próprias cosmologia e cosmogonia acerca da saúde e da doença. A importância de formarmos médicos indígenas está, não em modificar essas compreensões prévias e pertinente a cada povo, mas em informar uma outra compreensão que é a da cultura do povo branco, assim chamados por eles. Com todo esse conhecimento, cada povo terá instrumentos técnicos para intervir da melhor maneira no bem-estar dos seus parentes”.
Ela reforça que “a proposta das instituições de ensino não é substituir atitudes, nem colonizar condutas, mas adicionar informações e procedimentos que serão manejados pelos médicos indígenas nas suas realidades, conforme o que esteja disponível para eles no momento de suas ações profissionais”.
E os ganhos da presença de estudantes indígenas na Universidade também alcançam os não indígenas, na opinião da professora de Medicina da UFPA. “ Uma outra grande importância no processo de formação de indígenas médicos é o compartilhamento de informações de suas culturas, de seus hábitos para o estudante não indígena em formação, que compartilha a sala de aula com eles, o ambulatório, a enfermaria, o Restaurante Universitário, o ônibus: é a interculturalidade”.
“Em uns dois anos, devo procurar uma especialização. Provavelmente em Saúde da Família ou Clínica Geral. Mas o que quero e preciso agora é mesmo exercer a medicina entre os meus”, pontua o médico indígena formado pela UFPA
Texto: Glauce Monteiro - Assessoria de Comunicação do ICM/UFPA
Fotos: Arquivo pessoal
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